estacionei o automóvel em frente à casa que chamo de minha, ponto morto, puxei o freio de mão, virei a chave, a luz acendeu. Não pude me mover, uma completa ausência de mim, uma eterna preguiça de encarar quem eu escolhi ser sem que ninguém mais visse: o caminho solitário do automóvel até o interior da casa. Naquele lapso de tempo ninguém mais além de mim veria minha inércia. Realmente não existe nada de mais interessante em meu rosto além dessas olheiras roxas e do meu suor, nada que brilha e resplandece, não existe alma em meus movimentos. Eles parecem espasmos que ainda não aceitaram a falta de vigor deste corpo. Entrei, coloquei todos os objetos onde não deveriam ficar e sempre ficam. Sentada, sinto no nariz a marca nítida que lembra que meus óculos já não querem que eu enxergue, e de perto observo uma barata tentando morrer. Devia ser proibido sobreviver, devia ser proibido quase morrer. chorei. Aquela barata sou eu, as pernas viradas pro mundo, tocando o ar e mais nada palpável, estatelada no chão frio. clamei pela vida da barata sem mover um fio pra ajudá-la, mas agradeci muito àquela barata por conseguir chorar por algo, estou sem forças para chorar, aquela barata foi o mais sensível de meu dia. Aquele bicho asqueroso teve empatia por mim. Aquele bicho viu mais que olheira e suor em meu rosto. Limpei e comi minhas lágrimas, mantive aceso dentro de mim o sal dos meus olhos, desidratei meus sonhos, apaguei a luz e saí.