segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Pisca-pisca

Me fartei em pães e muito circo e na saída só me cobraram os pães, o circo estava montado com muitas luzinhas coloridas que piscavam sem parar, como que dizendo: você, comeu, você, bebeu, você, pagou, a cada vez que acendiam. Quando a luz fazia a pausa eu pensava: eu, comi, eu, bebi, eu, paguei. E sentia culpa... se pelo menos eu tivesse apenas comido, e não bebido, ou se tivesse comido e bebido, e não pagado, mas não, eu comi, bebi e paguei, e como se não bastasse só me cobraram o pão, não me cobraram a cachaça pra esquentar o frio, a roupa, a festa, o carro, o sorriso, a saúde. Muito generoso de sua parte, mesmo a conta sendo parte minha. Não me cobraram nada disso e eu ainda achei muito. Minha culpa piscava com as luzinhas que reluziam refletidas nas vitrines das lojas fechadas para o natal.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Que eu


Eu andasse, eu encontrasse, coragem eu tomasse e falasse e amasse. Eu corresse e abraçasse, e eu sonhasse para que em sonho eu vivesse que eu beijasse. Eu juntinho dormisse e acordasse e coladinho eu ficasse. Eu ligasse quando vontade eu sentisse, eu pudesse, e falasse, falasse, até que a ligação caísse. Eu adormecesse, a voz me embalasse. Eu admitisse, eu encontrasse. Eu a tarde passasse e pela noite cansasse e juntinho desistisse e saísse. Saísse e conversasse, e sobre nada falasse e eu tudo sentisse. De repente eu chorasse e depois ignorasse, eu imediatamente risse, gargalhasse, louca eu me achasse e a mão eu segurasse, e os dedos entrelaçasse e junto embora fosse e no outro dia continuasse,

Quem me dera: - 

domingo, 9 de dezembro de 2012

Instinto

O que sinto é uma vontade de sentir alegria, no entanto me enojo com um pouco de compaixão, e na compaixão por tudo o que vejo me compadeço de mim por não sentir alegria. Deste modo me alheio a tudo o que ouço, como se a audição fosse parte maior da realidade ignorada por mim. Invento sem querer uma trilha para embalar meu asco. Nos fones de ouvido a canção alegre é completamente deturpada pelo que sinto, me sinto destrutiva. Meu engano é tamanho, pois na fuga, anulando este sentido aguço o de maior peso sobre a confusão do que sinto, e vejo muito, vejo muito. Me dou conta da impossibilidade de ignorar, tal asco adentra qualquer lugar que eu me enconda e eu, já tão afetada por ele decido-me por admirar, tento tirar a força da canção, da compaixão, mas nada me obedece e, ainda destrutiva, destruo minha vontade de alegria, só quero que ela passe... e vai passando... passando... 

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Do latin Religare


Quem inventou as palavras não foi Deus. Meu deus não se comunica por palavras, nem pelas palavras ditas com fervor entre quatro paredes ditas sagradas. Meu deus se comunica através do vento, meu deus chove sobre o mato verde e tem cheiro de terra molhada, meu deus se mostra através de sete bilhões de exemplares distintos, meu deus não fala só a língua dos anjos, ele fala 6912 línguas, ele é brasileiro, jamaicano, hindu e japonês. O meu deus é o sol que abre depois da chuva, meu deus casa por amor, meu deus tem as cores de um bico de tucano, meu deus se põe todos os dias às seis da tarde e espalha-se em muitos tons. Meu deus é um ipê amarelo, meu deus ama. Meu deus tem cheiro de dama-da-noite, meu deus às vezes chove gelo. O meu deus não se comunica por palavras, se comunica através de um ser que cresce dentro do outro, se alimenta através do outro. Meu deus é uns sessenta órgãos em apenas 53 centímetros. Meu deus depois cresce e se alimenta sozinho. Meu deus tem cabelo crespo, liso, preto e laranjado. Meu deus é a música que faz rir, meu deus é a música que faz chorar. Eu ceio com deus todas as noites na minha mesa, ele está presente mesmo quando não estou reunida em seu nome. Meu deus está numa queda d’água gelada, meu deus cresce de semente à árvore à maçã à semente. Não preciso me religar a deus. Sempre estive inteiramente ligada. Como distanciar-se desse deus? Homens, não nos confundamos com nossas próprias palavras, aquelas em que tanto acreditamos, afinal “Deus É”.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

A vida das coisas


Tudo o que me é visceral quando escrevo parece pouco diante das vísceras. No exato instante da coisa pareço rasgar o peito deixando eclodir dele palavras, mas quando me encontro com elas me parecem tão insossas e infladas de certeza... No entanto a coisa não é certa, a coisa é muito confusa. A certeza, na realidade, é nenhuma e as vísceras são demasiadas para serem descritas. Me vejo enchendo de palavras a coisa. Que coisa!!! Ajo, portanto equivocadamente, como quem tem o direito de exigir cada coisa em seu lugar. E dentro da vida das coisas sou inteiramente capacitada de não conseguir descrever a vida das coisas. E na minha inteira capacidade acaricio meu ego tão capaz, mesmo que tão capaz de não conseguir. Vísceras só podem ser sentidas, não podem ser descritas e hoje não quero ser rasa, então só vou sentindo... sentindo...

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Dos verbos que sinto

Penso, ignoro, desejo, afasto, encorajo, iludo, rioechoro, choro, gosto, desgosto, sinto, padeço, alegro, entristeço. Fico, saio, distraio, mantenho, olho, esqueço. Aguento, sinto saudade e estremeço. Desencontro, forço, encontro, ouço e enlouqueço. Como, preguiço, converso, falo e me fortaleço. Caminho, vejo a flor, fotografo, durmo, amanheço.Chovo, seco, falo, paro, atravesso, apresso, quase caio, recomeço. Espero, canso, pacifico, observo, entendo, aceito, mas peço. Esclareço, procuro, não encontro e quase esqueço. Desço degraus, me olho no espelho, bato a porta, sento, envio, concentro e me aqueço. No mais eu só sinto e escrevo, sinto e escrevo, sinto e escrevo, sinto e escrevo, sinto e escrevo ...

                                          Foto: Isabella Pina

sábado, 10 de novembro de 2012

Com a letra de Fim


Quando finda, o fim fica sendo a única referência. Como explicar a força que passa a ser fraqueza?  Sem foco e com mil facetas volto a fitar a face do que felizmente ainda é meu. Forço e reforço para que nem no fundo eu queira fantasiar. E fico. E fico. E fico. E, feliz , um tanto insatisfeita me faço uma tristeza. Fisicamente fraco meu corpo fabrica a força que me falta pra ser feliz nesse mundo de faz de conta, e penso em “faz de conta que fiava com fios de ouro” para poder então fiar com fios de um tecido qualquer o forro com que cobrirei meu fantoche diário, f... f... fraquejo no fingir e opto por carregar o fardo de minha própria e faminta vida. Faz hoje um dia que uma fagulha de olhar me fez fugir do que fervia e finalmente me vi em febre fria para finalizar minha fase de fúria com a letra de fim:

                                                                       M       I        F

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Quando entrar Novembro


Quando entrar Novembro o céu me presenteará com um toró de lágrimas acompanhado de gritos graves de alegria. Dormirei embalada pela música celeste que tocará meu telhado e os telhados alheios. Trocarei o lado em que durmo para ficar mais perto da persiana, por onde entrará um vento úmido deixando molhar a pequena área do quarto. De olhos fechados sentirei o soprar do céu nos meus cílios. A intensidade vacilante do vento fará balançar a porta de vidro num barulho trêmulo que não ousará disputar com os demais. Depois de um tempo perceberei que ele me dando atenção, também queria atenção, e cada vez que me dispersasse num movimento de sono ele me chamaria de volta enchendo o céu de branco por um segundo e clareando meu quarto. Agradeceria com o grave grito de alegria e eu sorriria em resposta. Quando entrar Novembro a cidade receberá satisfeita as lágrimas doces pelo seu concreto que, com suas curvas fará durar ainda mais a queda das gotas. Quando entrar Novembro, o segundo dia será repleto de comoção, a grama permanecerá molhada, pois já chora sozinha depois que tanto chorou o céu sobre ela. Quando entrar Novembro vou querer chorar.

                                         Foto: Isabella Pina

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Eu não sou um fantasma

Eu, com uma aparência viva fantasmagórica disse à ela: "eu não sou um fantasma". Ela, deslizou seus olhos pela minha boca pálida, mirou a pele de organza, tão leve, fria e branca, e me acreditou piamente. Eu não era um fantasma. Naquele momento isso era tudo o que eu era: eu era não ser um fantasma. No início eu dizia com pouco fervor, mas depois de acreditado, minha fé me permitia nascer e viver. Eu mal pude acreditar. Como lidar com tal fato, com tal desconhecido? VI-VER. VVVVVVI-VVVVER. A palavra dita lentamente parecia querer me fazer voar. Então eu perguntei à ela: - Como é que se faz isso?, -Voar?,
- Não, viver. Ela deu de ombros e respondeu - Eu não sei, a gente só fica existindo. Como é que alguém pode só ficar existindo? Logo percebi que ela nunca compreenderia meu entusiasmo, ela só havia nascido uma vez e há muitos anos, não sabia como era viver tão recente. Só com muitos anos. Só aquele tempo que ela já tinha vivido poderia fazê-la acreditar-me. Eu a agradeci tanto por aqueles seus anos vividos... a crença dela em mim me fez ser viva. Volta e meia eu me embaraçava no meio de tantas perguntas. Eu perguntava como era ter memória, ela disse-me que como era acostumada a existir uma vez atrás da outra, não tinha tempo de lembrar. Quando me senti inutilmente mais preparada para sair vivendo levantei-me, ela disse -Psiu, deixa eu te contar um segredo?, -Claro,

-Eu sou um fantasma.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Boa noite, borboleta!

           Tomei banho à meia-noite acompanhada de uma borboleta amarela que me fez pensar. Isso merece uma crônica. A borboleta tinha fisionomia de borboleta velha como gente velha têm fisionomia de gente vivida e, como um bom corpo cansado, se pôs de costas para qualquer assunto meu, sonoro ou visual. Seu corpo amarelo contrastava com todo o mais presente naquele lugar úmido. Decerto ela fazia algum tipo de som inaudível para o meio externo, muito menos com tanto barulho de água. De tão serena que era acho que tinha medo do que corria, a água, portanto manteve-se de costas até o fim.
           Por que com toda o potencial de ser borboleta ela continuava parada num lugar escuro, úmido e que não parava de chover? O amarelo não tem nada de úmido. Por que tão amarela não ia esperar o dia mais perto do sol? Enquanto enxaguava os cabelos eu observava atenta para que se ela resolvesse sair não me desse um susto, e me atentei: ela pousava, dentre mil cosméticos, na janela do banheiro e, de costas para mim vislumbrava o exterior. Entendi tudo: ela estava tão nua quanto eu, sua fraqueza estava a mostra e se transformava em força. Não era a sua opção estar ali, simplesmente lhe ocorreu estar, e sem lutar ela ia estando. E se ela não lutava consigo, por que eu lutaria?
           Mesmo em minha estranheza deixei então que ela fosse amarela escura e úmida como escolheu ser. De frente para a janela espiava o nascer do dia, a sensibilidade lhe permitia saber que já passava da meia-noite, numa noite como essa não havia lugar mais seguro para espiar o sol nascer. Quieta ela parecia querer passar despercebida, e eu a ajudei. Me enchi de solidariedade e terminei meu banho de forma a deixá-la a sós com sua nudez, e por um momento esqueceu sua gana de invisibilidade e agradeceu abaixando as asas.
- Boa noite, borboleta, preciso ficar a sós com minha nudez!

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Pelos cantos..

Têm que cair. E quando caem escorrem devagar até o canto da boca pra que eu experimente o diferente nível de sal que elas têm. Hoje são de raiva e têm um gosto insosso, entre o salgado da tristeza e o doce da alegria, e entre os dois me encontro assim sem tempero algum. A gota insossa é o estopim para que transborde o que está condensado no peito, nas extremidades, na cabeça. Na falta de outras presenças deixo transbordar essa...

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Direito ao grito

Chove e o céu escuro faz parecer que sempre é manhã, uma atmosfera de "espera". Espera por respostas, por presenças, por letras miúdas em uma tela pequena. Em outra ocasião ouviria um violão dedilhado num ritmo lento acompanhado de uma voz um tanto suave, mas optei por uns solos de guitarra e um cara gritando 'Hey, hey, baby, when you walk that way, wach your honey drip, can't keep away' sem camisa e de calça jeans que me deu vontade de sair correndo sozinha gritando só de calça jeans, mas me contive em estar sentada no sofá com minha roupa caseira, me ative como me atenho diariamente para não sair correndo. E pela primeira vez, sozinha em casa não soube como proceder e saí andando descalça sentindo o gelado da cerâmica, que estava tão fria quanto eu. Bom, a parte boa é que posso gritar. Hey, hey, mamaaaaaa!!!


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Preces à vida


Dê-me coragem para que eu seja o que não sou, para dizer o que não digo e agir como não ajo. Dê-me fôlego para gritar enquanto até hoje somente sussurrei e para acreditar naquilo em que eu não acredito. Dê-me paciência para que o deslize consciente seja aceito por mim quando vacilam os joelhos, e equilíbrio para que eu me lembre de desequilibrar (mas peço uma linha no chão, para que eu não perca a referência). Dê-me um pouquinho de fúria, pois já me deste muito controle. E loucura para aceitar a que já é minha. Um desejo contínuo e controlado, uma ansiedade bem recompensada, uma lágrima bem salgada, um vento bem úmido de preferência depois de ter chovido, um sol depois da chuva, um abraço que não exige beijo, um pão com muito queijo, um achado particular que eu não esperava encontrar, uma foto em que eu veja um sapato preferido antigo, uma vontade de correr realizada, uma direção desconhecida, o beijo da tarde passada. Que alguém que acabou de ser amado passe por mim e me dê bom dia e que, de dentro da tristeza daquele dia, eu sorria. Dê-me uma viagem em época de chuva de verão onde o matinho cubra de verde a janela do carro e, de todas as vontades, me dê a de continuar querendo...

domingo, 7 de outubro de 2012

Dia branco

Que dia triste... Brilha um sol que de tão intenso espalha tons de branco, tão vivo e sem graça que não dá pra ver um amarelinho. Dia quente aquecendo as extremidades do meu corpo desmemoriado. Falta de tudo um pouco, um pouco de cor, um pouco de morte talvez, depois de tanta vida. Foi o que me disse alguém. Na verdade a gente vagava sobre os opostos complementares e me peguei sem ter muito o que dizer, apesar de ser "externa demais" só consegui vagar pra dentro e conclui que no presente momento eu me anulo. Sinto muito tudo, e então sinto nada. E sentindo nada peço reforços de afetação, sem exigências, por favor! Sei que só abri uma fresta média (não foi tão pequena assim), mas mesmo assim não custa tentar.