terça-feira, 30 de outubro de 2012

Eu não sou um fantasma

Eu, com uma aparência viva fantasmagórica disse à ela: "eu não sou um fantasma". Ela, deslizou seus olhos pela minha boca pálida, mirou a pele de organza, tão leve, fria e branca, e me acreditou piamente. Eu não era um fantasma. Naquele momento isso era tudo o que eu era: eu era não ser um fantasma. No início eu dizia com pouco fervor, mas depois de acreditado, minha fé me permitia nascer e viver. Eu mal pude acreditar. Como lidar com tal fato, com tal desconhecido? VI-VER. VVVVVVI-VVVVER. A palavra dita lentamente parecia querer me fazer voar. Então eu perguntei à ela: - Como é que se faz isso?, -Voar?,
- Não, viver. Ela deu de ombros e respondeu - Eu não sei, a gente só fica existindo. Como é que alguém pode só ficar existindo? Logo percebi que ela nunca compreenderia meu entusiasmo, ela só havia nascido uma vez e há muitos anos, não sabia como era viver tão recente. Só com muitos anos. Só aquele tempo que ela já tinha vivido poderia fazê-la acreditar-me. Eu a agradeci tanto por aqueles seus anos vividos... a crença dela em mim me fez ser viva. Volta e meia eu me embaraçava no meio de tantas perguntas. Eu perguntava como era ter memória, ela disse-me que como era acostumada a existir uma vez atrás da outra, não tinha tempo de lembrar. Quando me senti inutilmente mais preparada para sair vivendo levantei-me, ela disse -Psiu, deixa eu te contar um segredo?, -Claro,

-Eu sou um fantasma.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Boa noite, borboleta!

           Tomei banho à meia-noite acompanhada de uma borboleta amarela que me fez pensar. Isso merece uma crônica. A borboleta tinha fisionomia de borboleta velha como gente velha têm fisionomia de gente vivida e, como um bom corpo cansado, se pôs de costas para qualquer assunto meu, sonoro ou visual. Seu corpo amarelo contrastava com todo o mais presente naquele lugar úmido. Decerto ela fazia algum tipo de som inaudível para o meio externo, muito menos com tanto barulho de água. De tão serena que era acho que tinha medo do que corria, a água, portanto manteve-se de costas até o fim.
           Por que com toda o potencial de ser borboleta ela continuava parada num lugar escuro, úmido e que não parava de chover? O amarelo não tem nada de úmido. Por que tão amarela não ia esperar o dia mais perto do sol? Enquanto enxaguava os cabelos eu observava atenta para que se ela resolvesse sair não me desse um susto, e me atentei: ela pousava, dentre mil cosméticos, na janela do banheiro e, de costas para mim vislumbrava o exterior. Entendi tudo: ela estava tão nua quanto eu, sua fraqueza estava a mostra e se transformava em força. Não era a sua opção estar ali, simplesmente lhe ocorreu estar, e sem lutar ela ia estando. E se ela não lutava consigo, por que eu lutaria?
           Mesmo em minha estranheza deixei então que ela fosse amarela escura e úmida como escolheu ser. De frente para a janela espiava o nascer do dia, a sensibilidade lhe permitia saber que já passava da meia-noite, numa noite como essa não havia lugar mais seguro para espiar o sol nascer. Quieta ela parecia querer passar despercebida, e eu a ajudei. Me enchi de solidariedade e terminei meu banho de forma a deixá-la a sós com sua nudez, e por um momento esqueceu sua gana de invisibilidade e agradeceu abaixando as asas.
- Boa noite, borboleta, preciso ficar a sós com minha nudez!

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Pelos cantos..

Têm que cair. E quando caem escorrem devagar até o canto da boca pra que eu experimente o diferente nível de sal que elas têm. Hoje são de raiva e têm um gosto insosso, entre o salgado da tristeza e o doce da alegria, e entre os dois me encontro assim sem tempero algum. A gota insossa é o estopim para que transborde o que está condensado no peito, nas extremidades, na cabeça. Na falta de outras presenças deixo transbordar essa...

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Direito ao grito

Chove e o céu escuro faz parecer que sempre é manhã, uma atmosfera de "espera". Espera por respostas, por presenças, por letras miúdas em uma tela pequena. Em outra ocasião ouviria um violão dedilhado num ritmo lento acompanhado de uma voz um tanto suave, mas optei por uns solos de guitarra e um cara gritando 'Hey, hey, baby, when you walk that way, wach your honey drip, can't keep away' sem camisa e de calça jeans que me deu vontade de sair correndo sozinha gritando só de calça jeans, mas me contive em estar sentada no sofá com minha roupa caseira, me ative como me atenho diariamente para não sair correndo. E pela primeira vez, sozinha em casa não soube como proceder e saí andando descalça sentindo o gelado da cerâmica, que estava tão fria quanto eu. Bom, a parte boa é que posso gritar. Hey, hey, mamaaaaaa!!!


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Preces à vida


Dê-me coragem para que eu seja o que não sou, para dizer o que não digo e agir como não ajo. Dê-me fôlego para gritar enquanto até hoje somente sussurrei e para acreditar naquilo em que eu não acredito. Dê-me paciência para que o deslize consciente seja aceito por mim quando vacilam os joelhos, e equilíbrio para que eu me lembre de desequilibrar (mas peço uma linha no chão, para que eu não perca a referência). Dê-me um pouquinho de fúria, pois já me deste muito controle. E loucura para aceitar a que já é minha. Um desejo contínuo e controlado, uma ansiedade bem recompensada, uma lágrima bem salgada, um vento bem úmido de preferência depois de ter chovido, um sol depois da chuva, um abraço que não exige beijo, um pão com muito queijo, um achado particular que eu não esperava encontrar, uma foto em que eu veja um sapato preferido antigo, uma vontade de correr realizada, uma direção desconhecida, o beijo da tarde passada. Que alguém que acabou de ser amado passe por mim e me dê bom dia e que, de dentro da tristeza daquele dia, eu sorria. Dê-me uma viagem em época de chuva de verão onde o matinho cubra de verde a janela do carro e, de todas as vontades, me dê a de continuar querendo...

domingo, 7 de outubro de 2012

Dia branco

Que dia triste... Brilha um sol que de tão intenso espalha tons de branco, tão vivo e sem graça que não dá pra ver um amarelinho. Dia quente aquecendo as extremidades do meu corpo desmemoriado. Falta de tudo um pouco, um pouco de cor, um pouco de morte talvez, depois de tanta vida. Foi o que me disse alguém. Na verdade a gente vagava sobre os opostos complementares e me peguei sem ter muito o que dizer, apesar de ser "externa demais" só consegui vagar pra dentro e conclui que no presente momento eu me anulo. Sinto muito tudo, e então sinto nada. E sentindo nada peço reforços de afetação, sem exigências, por favor! Sei que só abri uma fresta média (não foi tão pequena assim), mas mesmo assim não custa tentar.